por Luciano Carlos Cunha
Você já se perguntou o que faz com que alguém seja vendido?
É claro. Todos nós vivemos num mundo onde estamos rodeados o tempo todo por coisas que são vendidas. As coisas vendidas são chamadas mercadorias. Nascemos e vivemos tão acostumados com isso que talvez nunca tenhamos parado para pensar para que serve o conceito de mercadoria.
Bom. Para começar, uma mercadoria é um item de propriedade, e como tal, ela tem um dono, um proprietário. Mas, vamos lembrar de onde iniciamos a questão: “o que faz com que alguém seja vendido?”. Uma mercadoria só é vendida por um preço, um valor. E uma mercadoria só é mercadoria por ter um valor que está fora dela. Os outros dão esse valor. Dependendo do quanto a mercadoria favoreça aos interesses do seu proprietário, ela será mais ou menos valorizada. Por definição, um item de propriedade é algo que só tem valor instrumental, condicional, extrínseco. É por isso também que uma mercadoria é chamada uma coisa. Compreendemos bem quando dizemos isso de um relógio ou de uma laranja. Nem um relógio nem uma laranja conseguem ver valor em sua própria existência, porque falta-lhes uma mente. Assim, os donos de relógios e laranjas podem fazer o que bem entenderem com seus itens de propriedade (vender, dar, trocar e até mesmo destruir), pois esses itens não podem sofrer um mal1.
Até aí parece tudo muito simples. Mas, a coisa fica intrigante quando perguntamos porque é que alguns seres que claramente possuem uma mente são vendidos. Se são vendidos, é porque são considerados coisas – o comprador tem o direito de propriedade sobre a coisa, e pode fazer com ela o que bem entender. Aqueles seres vivos que separam-se de sua fonte de provimento ao nascerem precisam da mente para moverem-se com segurança no ambiente2. É por isso que os chamamos animais, pois são animados (dotados de movimento por ação própria – diferentemente por exemplo, de um cata-ventos, que só pode mover-se por forças externas). E é claro, seres humanos também estão incluídos nessa categoria de seres animados.
A nossa busca está cada vez mais intrigante porque, claramente vemos que em nossa sociedade, alguns animais são vendidos e com relação a outros, achamos repugnante a idéia de vendê-los. Se quisermos sustentar firmemente nossa posição, para não sermos acusados de irracionalidade, precisamos demonstrar alguma diferença que exista entre os animais que podem ser vendidos e os que não podem. Uma diferença que diga que alguns animais devem ser agrupados junto com relógios e laranjas e que outros animais são tão diferentes dos primeiros que devem ser colocados em um grupo separado.
Podemos iniciar nossa análise com relação aos seres humanos. Há algum tempo atrás (e não faz muito tempo), humanos de pele negra eram considerados itens de propriedade dos humanos de pele branca. Também as mulheres, já foram consideradas itens de propriedade dos homens. Hoje em dia, achamos repugnante a idéia de que um ser humano possa ser vendido. A noção de que cada um de nós possui uma existência psicológica (e não meramente biológica como uma laranja, por exemplo) faz nos enxergarmos como possuindo o direito de não sermos utilizados como se fôssemos uma mercadoria, uma fonte renovável, um modelo de testes, como se só tivéssemos valor enquanto servíssemos aos interesses dos outros, enfim, como se fôssemos meros meios para fins de outros3. É por esse motivo que consideramos a escravidão como algo repugnante: diferentemente de laranjas ou relógios, nos importamos com o que acontece conosco, e podemos ser atingidos maleficamente por alguma ação ou omissão de terceiros. Por possuirmos um bem-próprio e nos importarmos com o que acontece conosco, nosso valor é inerente4, e não instrumental. Sentimos que nossa vida, integridade física e liberdade de movimento não têm preço. Elas não podem ser compradas.
Tratar um indivíduo que possui uma mente como se fosse uma mercadoria é rebaixá-lo ao estatuto de coisa, é mostrar desrespeito pelos seu valor inerente e seus interesses. Quando se trata de seres humanos, nós concordamos prontamente com todos esses princípios. Mas, se somos realmente racionais, precisamos então explicar porque deveria ser diferente com relação a membros de outras espécies. Em suma, por que respeitar um interesse de não ser usado como uma coisa, de não ser escravizado, em um ser de nossa espécie, e não no de outra? O que nos torna tão especiais?
Alguns dizem: é porque humanos são de nossa espécie. Mas isso é como dizer que “humanos são humanos”, e isso já sabemos. Queremos saber o que torna todos os humanos tão especiais. Muitos apontam a capacidade para a razão plena. Mas assim estariam excluídos nossos bebês, as crianças muito pequenas, os humanos com graves lesões cerebrais, e os idosos senis. Além disso, muitos animais não-humanos possuem níveis de raciocínio muito acima do deles. Idosos senis podem já ter tido a razão desenvolvida um dia e bebês saudáveis podem ainda vir a desenvolvê-la, mas certos humanos passarão a vida inteira no mesmo estado (de não ter a posse plena da razão mas poder desfrutar de sua vida prazerosamente) e nem por isso os utilizamos como se fossem nossos recursos. Resumindo, não há como traçar uma linha divisória com base em capacidades cognitivas, que coloque todos os humanos acima da linha e todos os não-humanos abaixo5.
As tentativas do parágrafo anterior de apontar uma diferença entre humanos e não-humanos não foram bem-sucedidas porque tiravam uma conclusão que não tinha a ver com o assunto das premissas. As premissas diziam respeito a alguém por esse alguém ter o interesse em não ser usado como se fosse uma coisa, e a capacidade para a razão plena nada tem a ver com isso. Para sofrer um mal, basta ser senciente (possuir a capacidade de sofrer/ desfrutar da vida). Nisso, nos igualamos aos outros animais, pois somos dotados de mente. Se não conseguimos apontar uma diferença moralmente relevante entre humanos e não-humanos que justifique a diferença no tratamento, é sinal de que nós, que nos auto-proclamamos racionais, estamos embasados num preconceito irracional, de aparências: o especismo6, (assim como o racismo e o sexismo). Se não há mérito ou demérito por alguém ter nascido com este ou aquele formato de corpo (raça, sexo ou espécie), pois, não resulta de investimento pessoal7 (qualquer um de nós poderia ter nascido com rabo, patas e bico), como usar essas características para justificar usar o outro como se fosse uma coisa? Dessa forma, se somos racionais, precisamos estender aos não-humanos o mesmo direito moral básico8 de não ser usado como mero meio para fins de outros (por exemplo, como um item de propriedade), seja para qual fim for: alimentação, experimentos, vestimenta, entretenimento. E não importa se essas práticas são feitas sem dor ou não, com morte ou não: todas elas violam o princípio básico de que seres com uma mente não são coisas.
Ainda há outra questão intrigante. Algumas pessoas defendem que é errado escravizar, torturar, matar, vender seres humanos e certos seres não-humanos (como cachorros ou gatos), mas não vêem nada de errado em fazer isso com galinhas, bois, vacas, porcos, etc. Essa diferenciação é ainda mais difícil de entender, e não pode ser explicada a não ser por um outro preconceito semelhante ao primeiro tipo de especismo (o elitista, que coloca os seres humanos como uma elite): o especismo eletivo9 (onde se escolhe uma espécie para respeitar enquanto se continua a fazer uso de todas as outras). Isso só pode ser explicado através de uma preferência sentimental que alguns tem por certos formatos de corpo. Não haveria problema algum com essa preferência se as pessoas não pensassem que o respeito que elas devem se mede pela quantidade de amor que elas sentem. Amar é opção, respeitar é dever10. E o respeito depende apenas das características do paciente da ação (se este pode ou não sofrer um mal), e não de sensações subjetivas na mente do agente (porque o paciente pode continuar a sofrer o mal, quer o amemos, quer o odiemos).
Assim sendo, a única posição coerente, com relação ao que estávamos investigando sobre o conceito de propriedade é: separarmos de um lado, as coisas (sem mente) que podem ser itens de propriedade e de outro, os indivíduos (que passam a ter o direito de não serem usados). Com isso, necessitamos da abolição11 do uso de animais (tanto humanos quanto não humanos) enquanto itens de propriedade de seres humanos, não meramente sua regulamentação (pois nenhum defensor sério dos direitos humanos defende a regulamentação do estupro), simplesmente porque regulamentar a escravidão é torná-la mais forte e mais bem-vista aos olhos do público.
NOTAS
1 Cf. Gary L. FRANCIONE. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000, capítulo 3.
2 Sobre essa definição de animal, ver Arthur SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Como Representação. São Paulo, Unesp, 2005, p. 214-215.
3 Cf. Tom REGAN. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 85.
4 Id, p. 84.
5 Cf. Peter SINGER. The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, p. 57.
6 Cf. Richard D. RYDER. Speciesism. In: ________. Victims of Science: the use of animals inresearch [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-Vivisection Society Limited, 1983, p. 5.
7 Cf. FELIPE, Sônia T. . Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, 2006, p. 219.
8 Cf. Gary L. FRANCIONE. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000, p. 92-102.
9 Os termos especismo elitista e especismo eletivo são utilizados pela filósofa Sônia T. FELIPE. Ver entrevista em www.sentiens.net/pensata/PA_ENT_soniafelipe_0002.html
10 Agradeço a sugestão dessa frase a Maurício Varallo.
11 Cf. Tom REGAN. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 77.
Referências
FELIPE, Sônia T. . Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, p. 207-230, 2006.
FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000.
REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 77-88.
RYDER, Richard D. Speciesism. In: ________. Victms of Science: the use of animals in research [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-Vivisection Society Limited, 1983, p. 1-14
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Como Representação. São Paulo, Unesp, 2005
SINGER, Peter. The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, pp 57-65.
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Luciano Carlos Cunha é licenciado em Educação Artística com habilitação em música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), ativista do GAE - Grupo pela Abolição do Especismo, de Florianópolis, e colaborador do site Sentiens Defesa Animal. E-mail: moderador@sentiens.net
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